311 votos, nenhum texto final e muita pressa. A Câmara dos Deputados aprovou a urgência do PL 2162/2023 e colocou em velocidade máxima um tema que divide o país: a anistia para envolvidos em atos antidemocráticos desde outubro de 2022, incluindo os ataques de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Com a urgência, o projeto pode ir direto ao plenário, sem passar pelas comissões. O placar foi elástico: 311 a favor, 163 contra e 7 abstenções.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), bateu o martelo depois de meses de pressão da oposição e de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. O empurrão final veio após a condenação de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada, com pena superior a 27 anos de prisão. A reação foi imediata no plenário: a pauta de anistia virou prioridade e atropelou outros projetos relevantes.
Há um detalhe que muda tudo: o texto ainda não está fechado. A base é um projeto apresentado por Marcelo Crivella em abril de 2023, mas o relator poderá reescrever praticamente tudo. A escolha recaiu sobre o deputado Paulinho da Força (Solidariedade), que, segundo líderes do centro, tende a optar por um desenho mais restrito — reduzindo penas de presos e condenados, em vez de perdoar geral.
A urgência não é o mérito. É uma via expressa. Na prática, elimina a etapa de comissões temáticas e libera a votação direta em plenário. O relator agora trabalha nos critérios: quem poderá ser beneficiado, o período exato, que crimes ficarão de fora e qual o tipo de benefício (perdão, substituição de pena, conversão em serviços, revisão de dosimetria, ou progressão mais rápida).
O rascunho de 2023 falava em anistiar atos a partir de outubro de 2022. Esse recorte inclui manifestações pós-eleição e, no centro da disputa, o 8 de janeiro, quando prédios dos Três Poderes foram invadidos e depredados em Brasília. É aí que mora a polêmica: até onde a lei pode ir sem bater de frente com decisões do STF e com a própria Constituição?
Entre juristas ouvidos nos bastidores do Congresso, a discussão gira em torno de três pontos: a natureza dos crimes (políticos, comuns ou violentos), o alcance temporal (se o recorte é amplo demais) e a separação de Poderes (o quanto o Legislativo pode revisar, na prática, efeitos de condenações já dadas). Uma lei de anistia não é inédita no Brasil, mas qualquer passo que toque crimes como tentativa de abolição do Estado democrático de direito, dano qualificado e associação criminosa pode provocar ações diretas de inconstitucionalidade no STF.
Paulinho da Força, que tem trânsito entre centrão e oposição, sinalizou a interlocutores que quer um texto “executável”, com menor chance de ser derrubado no Supremo. Isso significa, por exemplo, discutir exclusões claras (quem praticou violência física, planejou, financiou ou comandou ataques organizados) e abrir espaço para revisão de penas de quem teve participação considerada secundária, com foco em alternativas penais e redução de tempo de cárcere.
Do ponto de vista procedimental, o roteiro é conhecido: relator apresenta parecer, líderes negociam, plenário vota por maioria simples. Se passar na Câmara, o texto segue para o Senado. Aprovado sem mudanças, vai à sanção presidencial; se for alterado, volta para os deputados. O governo pode vetar partes ou tudo, e o Congresso pode manter ou derrubar os vetos. E, em paralelo, pode vir judicialização no STF.
O timing político pesa. Partidos como Republicanos, PP e União Brasil — que se alinharam com força na urgência — já pavimentam o discurso para as eleições do próximo ano. A matemática da votação revela isso: a urgência precisava de 257 votos e recebeu 311. É uma coalizão larga, com sinal claro de que há apetite para ir ao mérito. A dúvida é se esse mesmo bloco sustentará um texto mais agressivo ou se ficará com um meio-termo negociado.
Os próximos dias serão de garimpo de redação. Pontos sob disputa nos gabinetes:
Enquanto a pauta da anistia ganhou tração, o restante do tabuleiro emperrou. O caso mais visível é a promessa da isenção do Imposto de Renda para salários até R$ 5 mil. A proposta avançou em comissão especial, mas não consegue chegar ao plenário. Líderes admitem, reservadamente, que a temperatura política em torno da anistia contaminou as negociações fiscais e tirou oxigênio de projetos com impacto orçamentário imediato.
Uma exceção foi a chamada “PEC da Blindagem”, que andou apesar do congestionamento. A leitura no governo é que houve um pacto tácito: ceder em temas de interesse do centrão e da oposição para, em troca, reduzir a pressão sobre outras frentes. Mesmo assim, a base governista reclama que a Câmara passou grande parte do ano orbitando o debate sobre o 8 de janeiro, deixando para depois a agenda econômica e social.
No campo jurídico, a temperatura também subiu depois da condenação de Bolsonaro. A aprovação da urgência foi vista pela oposição como um recado político ao STF. No governo e entre aliados do Supremo, o discurso é outro: anistia ampla poderia esvaziar a responsabilização de atos que atacaram o coração das instituições. Entre esses extremos, o centrão tenta uma síntese que preserve a narrativa de pacificação sem comprar briga frontal com a Corte.
Há ainda a questão da execução penal. Parte dos condenados pelo 8 de janeiro cumpre pena em regime fechado ou semiaberto; outros têm medidas alternativas e multas altas. Um texto calibrado pode, por exemplo, facilitar progressões, converter parte das penas em serviços comunitários, reduzir multas consideradas desproporcionais e priorizar penas restritivas de direitos para réus sem violência ou antecedentes. Esse desenho interessa a deputados que buscam uma saída “prática” para centenas de casos, sem o desgaste de um perdão total.
No xadrez eleitoral, Republicanos, PP e União Brasil — que atuam como uma federação poderosa no plenário — já testam mensagens para 2026. A defesa da anistia como “reconciliação” conversa com uma fatia do eleitorado à direita; o governo, por sua vez, deve insistir na linha da “responsabilização sem revanche”, tentando se credenciar como fiador da estabilidade institucional. A definição do texto por Paulinho da Força dirá quem acerta melhor esse tom.
Os próximos movimentos devem ser rápidos. O relator conversa com bancadas temáticas (segurança, evangélica, agronegócio) e líderes partidários para reduzir o número de destaques em plenário. Quanto mais consenso na redação, menor a chance de derrotas pontuais nos trechos sensíveis — e menor o risco de o projeto morrer no Senado por falta de acordo.
Mesmo com a urgência aprovada, o relógio corre contra manobras de obstrução. A oposição ao governo domina instrumentos regimentais e, se o texto pender demais para o perdão pleno, a base governista tende a radicalizar a obstrução. Se o relator optar por um pacote de reduções e revisões, a resistência diminui, mas a base mais ideológica da direita pode acusar “anistia de papel”. É um equilíbrio instável.
No fim das contas, duas perguntas mandam no jogo: que anistia o Parlamento quer aprovar — simbólica ou efetiva — e quanta tensão com o STF e o Planalto está disposto a bancar. O placar folgado da urgência mostra força para colocar o tema na rua. Mas o texto, este sim, definirá se o Congresso entrega uma saída negociada para o 8 de janeiro ou abre uma nova crise entre Poderes.
Por ora, o recado é claro: a Câmara pisou no acelerador. O mérito vem na sequência e, com ele, a prova de fogo de uma coalizão que ganhou na largada, mas ainda precisa cruzar a linha de chegada com um texto que sobreviva no Senado, no Planalto e no Supremo.